quarta-feira, 24 de setembro de 2008

A INFLUÊNCIA DO NEGRO EM NOSSA CULTURA

Sem dúvida um dos principais romances realistas modernos é Robinson Crusoé, de Daniel Defoe. Temos ali a história de um homem europeu, náufrago numa ilha distante, povoada por nativos indolentes e selvagens, que cria para si mesmo um feudo naquela terra desconhecida e primitiva, para enfim voltar, alguns anos depois, à civilização. Vejamos: até que ponto um romance como esse não influenciou corações e mentes na Europa, que se considerava a si própria a região mais desenvolvida no mundo, o ápice da espécie humana? Indo um pouco mais além: como os estereótipos expostos acima (“nativo indolente”, “selvagem”, “primitivo”, “civilização”) não eram reconhecidos como o senso comum entre a sociedade européia nos séculos XVIII e XIX? Esses estereótipos, ao lado de figuras de retórica como “oriente misterioso” e “espírito africano”, entre outras, estiveram presentes nas grandes narrativas de romances ingleses e franceses, que ajudaram a consolidar idéias defendidas pela política imperialista de países como a Inglaterra e França. Em seu livro “Cultura e imperialismo”, Edward Said nos mostra como os pressupostos imperialistas influenciaram a cultura e os grandes romances de sua época, fazendo com que a soberania européia se estendesse não só às armas, mas também à maneira de pensar e à própria imaginação dos dominadores e dominados. O legado imperial de anos de colonialismo ainda hoje continua a afetar – em todas as práticas sociais, políticas e ideológicas – as relações entre o Ocidente e o mundo por ele colonizado. Em 1978, o palestino Edward Said ganhou fama internacional ao escrever o clássico “Orientalismo”, no qual rompia com os estudos pós-coloniais inspirados no marxismo para abraçar as teses de Foucault. Até então ninguém ousara interpretar a história como uma luta pela linguagem, e sim como uma luta de classes, como Marx e seus seguidores queriam. O sucesso desse livro pode ser revelado no subtítulo presente em sua edição brasileira: “O Oriente como invenção do Ocidente”. Said insistia que o discurso constitutivo da civilização ocidental enquanto tal havia definido o Oriente como o Outro civilizacional perigoso e inferiorizado, de tal modo que essa dialética negativa ajudara em grande parte na constituição da civilização européia. Assim, o negro africano, o indiano e mesmo o branco irlandês eram vistos não apenas como diferentes, mas como a completa negação do branco europeu. Eram o seu reverso. Para um senhor de escravos, corrompido por esse imaginário colonial, os nativos não poderiam comprender sentimentos como bondade e compaixão, que lhes provocavam ódio; enquanto açoites, insultos e outros abusos lhes provocavam gratidão, afeição e apego inviolável. Antonio Negri faz coro com a explicação de Said ao informar: o mal, a barbárie e a licenciosidade do Outro colonizado tornam possíveis a bondade, a civilidade e o decoro europeu [1]. Ou, nas palavras de Sartre: “Não há nada mais coerente que um humanismo racista; o europeu só se tornou homem após gerar escravos e monstros”. Em “Cultura e imperialismo”, o autor amplia a argumentação contida em “Orientalismo”, descrevendo as relações do Ocidente metropolitano com suas colônias e tentando entender, até que ponto, grandes romances como “O coração das trevas”, de Joseph Conrad, “Kim”, de Rudyard Kipling ou “Passagem para a Índia”, de E.M. Foster, consciente ou inconscientemente, ajudaram a disseminar os pressupostos colonialistas. Ao relacionar o prazer estético de grandes obras como parte intrínseca do processo imperial, Said procura dizer que este novo aspecto a ser estudado, relacionando cultura e política, longe de reduzir, na verdade aprofunda nossa compreensão dessas obras. É necessário, segundo o autor, enxergar a história e a cultura de maneira não monolítica, descompartimentalizada, sem separações ou distinções reducionistas.Uma das realizações do imperialismo foi a de aproximar o mundo. Na introdução de seu livro, Said nos diz: “Todas as culturas estão mutuamente imbricadas; nenhuma é pura e única, todas são híbridas e heterogêneas, extremamente diferenciadas, sem qualquer monolitismo”. Para o autor, isso vale tanto para os Estados Unidos contemporâneos quanto para o mundo árabe moderno, em que restrições ao “não-americanismo” e ameaças ao arabismo são ainda comuns. Numa segunda parte do livro, o autor vai em busca de autores nas colônias que ousaram contestar a política imperial, inclusive aqueles que buscaram nos ideais da Revolução Francesa fontes para as lutas por independência em seus territórios ocupados. Ou como o personagem Caliban, presente em “A tempestade” de Shakespeare, influenciou poetas nas lutas pela libertação no Caribe.
Moldando o passadoNo primeiro capítulo de Cultura e imperialismo, “Territórios sobrepostos, histórias entrelaçadas”, Edward Said parte de um famoso ensaio crítico do poeta T.S. Elliot – “nenhum poeta, nenhum artista ou qualquer arte, tem seu pleno significado sozinho” – para discutir a idéia central presente em Elliot: a maneira como formulamos o passado molda nossa compreensão e nossas concepções do presente. Partindo daí, relata como na Guerra do Golfo de 1990-91 o confronto entre o Iraque e os Estados Unidos foi resultado de duas histórias fundamentalmente opostas, cada qual usada pelo establishment oficial do respectivo país em benefício próprio.Cultura e ImperialismoEdward W. SaidRogério Martins de Souzahttp://www.eco.ufrj.br/semiosfera/anteriores/semiosfera07/conteudo_res_esaid.htm#autor

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